A quem interessa a ideia de um país sem direitos trabalhistas?

Por: José Geraldo de Santana Oliveira, consultor jurídico da Contee
25/04/2022
Artigos e Opniões

Fazendo um apanhado de citações e tecendo comentários sobre o livro “O mito EUA — Um país sem direitos trabalhistas?”, de autoria do juiz João Rendas Leal Fernandes, o consultor jurídico da Contee, José Geraldo de Santana Oliveira, aponta, neste artigo, como informações equivocadas sobre a legislação trabalhista estadunidense são usadas por quem tenta destruir os direitos dos trabalhadores do Brasil. Confira:

Há anos, os detratores dos direitos fundamentais sociais de proteção ao trabalho, com o vil propósito de desacreditá-los, tecem aleivosas comparações entre o direito trabalhista brasileiro e o dos EUA, que afirmam não existir, residindo aí a razão por este ser desenvolvido e o Brasil, não.

Os tecelões de discursos contra os mencionados direitos fazem-se presentes entre empresários, doutrinadores, advogados, juízes, ministros do TST e do STF, sendo que suas falácias nunca foram robustamente desautorizadas, o que serviu de lastro para a reforma trabalhista e para várias decisões do STF que os apequenam, em claro benefício do capital.

Acaba de ser lançado pela Editora JusPODIVM, com prefácio do ministro do TST Lélio Bentes — de notório e incontestável compromisso com os valores sociais do trabalho e com a valorização do trabalho humano —, livro do juiz do TRT da 1ª Região — Rio de Janeiro, João Rendas Leal Fernandes, fruto de criteriosa pesquisa realizada nos EUA, com o título “O mito EUA — Um país sem direitos trabalhistas?”, que desautoriza por completa tais falácias.

Com o propósito de contribuir e incentivar o debate sobre essas questões, além de se recomendar a leitura do mencionado livro, trazem-se, aqui, excertos dos temas neles abordados, bem como a normatização brasileira de cada um deles.

2 Já na introdução, que se inicia à página 35, o autor trata da prevalência do negociado sobre o legislado, que, no Brasil, tornou-se pedra de toque no STF, a partir do julgamento do recurso extraordinário (RE) 590415, em 2016, que admite a redução de direitos por meio de acordos coletivos e convenções coletivas. Chegou-se ao extremo, no julgamento virtual do agravo em recurso extraordinário (ARE) 1121633, com tese de repercussão geral ainda pendente, de se reconhecer como constitucionais instrumentos normativos dessa natureza que se limitem à redução e/ou supressão de direitos, sem nenhuma contrapartida aos trabalhadores.

Essa danosa prevalência foi positivada pela Lei N. 13467/2017, que, além de além de reconhecer como válidos arremedos de acordos individuais com essa finalidade, acresceu à CLT o Art. 611-A, que a escancara por meio de acordos coletivos e convenções coletivas.

No livro sob comentários, acerca do tema, o autor assevera:

“Apesar de seu viés eminentemente contratualista, e da proeminência com ferida às ideias de liberdade contratual e autonomia da vontade, inexiste no Direito americano positivação ou consagração de um princípio de prevalência do negociado sobre o legislado” (p. 38).

Nota de rodapé: o que existe são “precedentes judiciais reconhecendo direitos renunciáveis ou irrenunciáveis através de acordos coletivos, além de alguns dispositivos legais esparsos que permitem negociação coletiva sobre determinados direitos previstos em lei” (p. 38).

NEGOCIADO VS. LEGISLADO E A IRRENUNCIABILIDADE DE DETERMINADOS DIREITOS (p. 175)

No que refere aos direitos individuais garantidos pela legislação federal, em especial a FLSA (salário-mínimo por hora de trabalho, remuneração adicional para trabalho extraordinário, liquidated damages e vedações ao trabalho infantil), a irrenunciabilidade revela-se mais clara. Embora não haja positivação genérica desse princípio, ele pode ser inferido de alguns dispositivos legais e das decisões da Suprema Corte em Brooklyn Savagins Bank v. O’Neill (1945) e D. A. Schulte, Inc. v.Gangi, 328.U.S..108 (1946). De acordo com SERGIO GAMONAI e CÉSAR ROSADO MARZÁN, nesses casos, a Corte examinou o texto legal, bem como a história e os propósitos legislativos, para concluir que os direitos ali previstos são de observância obrigatória e não podem ser objeto de renúncia (p.177).

Os direitos assegurados pelo FLSA também não podem ser objeto de renúncia ou transação pelo sindicato em acordos coletivos de trabalho, tampouco podem ser suprimidos por programas ou planos de benefícios estabelecidos pelo empregador, conforme expressa previsão na Seção 402 (b) dessa lei federal sobre licença ao trabalho” (p. 178).

3 No tocante à surrada e nunca comprovada alegação de que só o Brasil possui CLT, Justiça do Trabalho e Ministério do Trabalho, o autor anota:

“MITO DA JABUTICABA: ‘OS EUA NÃO TÊM CLT, JUSTIÇA DO TRABALHO OU MINISTÉRIO DO TRABALHO’ (p. 95)

Discursos inverídicos procuram desmerecer e tratar com desdém relevantes institutos jurídicos e instituições, sob o argumento de que eles supostamente não encontrariam paralelo em qualquer outro lugar do mundo, pelo que metaforicamente constituiriam ‘jabuticabas’ (fruto, aliás, também encontrado em múltiplos outros países) (p. 95)

Entretanto, os fatos não colaboram com o embuste: a Justiça do Trabalho existe em diversos países do mundo, tanto em países do common law, quanto de tradição da civil law, a qual herdamos do continente europeu.

O desmerecimento e descrédito a nossas instituições parece ganhar ainda mais ênfase quando a comparação é feita com os EUA (país visto, por muitos, como a ‘América que deu certo’), em especial quando apontada a ausência de determinado instituto na realidade norte-americana” (p. 96).

Os EUA possuem, diferente do mito tão difundido no Brasil, milhares de leis trabalhistas nas esferas federal, estadual e até local de governo, além de extensas regulamentações e fichas técnicas expedidas pelos mais diversos órgãos e agências responsáveis por suas respectivas execuções (p. 297).

Os EUA possuem, ainda, sistema de seguro-desemprego mantido de forma cooperativa e colaborativa pelo governo federal e cada um dos governos estaduais. Na vasta maioria dos estados, esse sistema é custeado por contribuições devidas exclusivamente pelo empregador, calculadas sobre os salários pagos a seus respectivos empregados. Trata-se de tributação incidente sobre as folhas de pagamento (payroll taxation) e não há, na maioria dos casos, cota parte do trabalhador ou dedução de valores em contracheque (Alaska, Nova Jérsei e Arizona são exceções) (p. 299).

De tudo isso, pode-se concluir que, embora os EUA não possuam determinados institutos aos quais estamos habituados no universo jurídico-trabalhista brasileiro, eles contam, por um lado, com múltiplas instituições trabalhistas únicas, próprias e singulares, que não encontram paralelo em qualquer outro país e que muitas vezes são omitidas ou ignoradas por aqueles que se referem à realidade americana com afirmações que misturam admiração e desconhecimento.

O sistema de proteção social aos trabalhadores, na maioria dos estados norte-americanos, pode estar ainda distante do patamar encontrado em determinados países escandinavos ou em outras nações com elevados índices de desenvolvimento humano (países da Europa ocidental e até mesmo o Canadá). No entanto, isso não significa que inexistam direitos trabalhistas, tampouco que o Direito do Trabalho nos EUA não tenha particular relevância, como institutos próprios (em todas as esferas de poder e de governo) e instituições especializadas em sua aplicação” (p. 300).

Faz-se necessário registrar que, no Brasil, o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) foi extinto logo ao primeiro dia de mandato de Bolsonaro (1º/1/2019), como símbolo do seu desprezo pelos direitos dos trabalhadores e como senha ao capital de liberação total à total inobservância desses direitos — o que se busca normatizar com a minuta de decreto posta sob hipotética consulta pública, que já mereceu veemente repúdio de todos quantos não compactuam com o desmonte da legislação trabalhista.

4 No quesito condutas trabalhistas desleais, aqui, chamadas de práticas antissindicais, e sem nenhuma previsão legal de punição, o autor diz:

“AS CONDUTAS TRABALHISTAS DESLEAIS (UNIFAIR LABOR PRACTICES0 CAPITULADAS NO NLRA (National Labor Relations Act ou Wagner Act) (p. 148)

Em United States v. Darby, 312 US.100 (1941), por unanimidade, atestou-se a constitucionalidade do Fair Labor Standards Act — FLSA, lei federal de 1938 cujo teor estabelece salário-mínimo hora, jornada máxima semanal, remuneração especial das horas extras e proibição de trabalho infantil. Segundo a Corte, o FLSA procura evitar que os estados se valham, em seu próprio benefício econômico, de práticas trabalhistas abaixo de um determinado padrão nacional mínimo. Entendeu-se, ainda, que o Congresso teria agido dentro dos limites de sua competência legislativa ao proibir condições de trabalho precárias capazes de gerar um impacto significativo no comércio interestadual.

Em H.J.Heinz Co. v. Labor Board, 311 U.S. 514 (1941), a Suprema Corte decidiu que, ao atingir efetivamente um ajuste com o sindicato, a recusa do empregador — após expressa solicitação do sindicato obreiro — em assinar um contrato por escrito formalizando os termos pactuados constitui recusa à negociação coletiva e uma conduta trabalhista desleal capitulada na Seção 8(5) do NLRA” (p. 150).

“A REAÇÃO DOS EMPREGADORES À ORGANIZAÇÃO COLETIVA E ÀS CAMPANHAS DE ORGANIZAÇÃO SINDICAL (p. 156)

No caso NLRB v. Exchange Parts Co. 375 U.S. 405 (1964), em decisão unânime relatada pelo justice John M. Harlan II, a Suprema Corte reformou julgado oriundo de Corte Federal de Apelações do 5º Circuito e entendeu constituir conduta trabalhista desleal capitulada na Seção 8 (a) (1) do NRLA o anúncio ou promessa, pelo empregador, quanto à concessão unilateral de benefícios aos empregados, a fim de interferir no resultado de uma iminente eleição de representação sindical (NLRB — National Labor Relations Board — Conselho Nacional de Relações de Trabalho)” (p.161).

No Brasil, chegou-se à teratológica exigência de concordância patronal para ajuizamento de dissídio coletivo de natureza econômica pela Emenda Constitucional (EC) 45/2004, reconhecida como constitucional pelo STF, no julgamento da ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 3431, ajuizada pela Contee em 2005 e julgada em 2020.

Com a certeza de que não sofrerão nenhuma punição nem sequer reprimenda, os representantes patronais, quantos aos processos negociais, limitam-se a recusar-se a estabelecer tratativas com essa finalidade ou condicionam a assinatura de instrumentos normativos coletivos à redução e/ou supressão de conquistas históricas, que, não raras vezes, ultrapassam meio século.

Aliás, a conduta desleal patronal quanto às negociações coletivas, desde o ano de 2019, passou a ser incentivada e premiada pela Seção de Dissídios Coletivos do TST (SDC), com a destinação de multa fixada em dissídio de greve aos sindicatos patronais que se recusarem a negociar, como faz prova a decisão proferida no processo RO-183-52.2014.5.11.0000 e em muitos outros de igual natureza.

Como se tudo isso não bastasse, há a expressa proibição legal de a Justiça do Trabalho examinar o conteúdo de convenções e acordos coletivos, contida no Art. 8º, § 3º, da CLT, com a redação dada pela Lei N. 13467/2017.

5 No que diz respeito ao mito da liberdade contratual irrestrita nos EUA, o autor afirma:

“Embora o sistema trabalhista norte-americano tenha significativo viés contratualista, e apesar de alguns pontos de maior flexibilidade (como o sistema de employment at will adotado na maioria dos estados, e a inexistência de uma lei federal sobre férias e licenças remuneradas), existe expressa regulamentação em leis (federais e estaduais) sobre diversos aspectos das relações de trabalho, incluindo, por exemplo, severas punições para o pagamento de salários em valores inferiores ao mínimo legal, não quitação de horas extras (com adicionais previstos em lei), além de proibir-se a utilização de sistemas de compensação de jornada ou banco de horas no setor privado. A legislação federal exige, ainda, a manutenção de registros de empregados, salários, jornada de trabalho e outras condições e práticas de emprego — Seção 211 (c) do FLSA (p. 182 e 183).

Deve-se lembrar também que o Worker Adjustment and Retraining Notification Act (WARN Act), uma lei federal de 1988, obriga a maioria dos empregadores com 100 ou mais empregados a conceder uma notificação (aviso-prévio) com 60 dias de antecedência em relação ao fechamento de fábricas ou dispensa em massa de empregados” (p.185).

No Brasil, a Lei N. 13467/2017, com o indecente e nada republicano propósito de esvaziar os sindicatos e, com isso, desproteger os trabalhadores, em vários de seus dispositivos, expressamente autoriza a redução e a supressão de direitos por meio de “acordos” individuais, aos quais os trabalhadores ou aderem sem discutir ou são sumariamente demitidos. Nesses incluem-se: prorrogação de jornada (Art. 59 da CLT); banco de horas, com duração de até seis meses (Art. 59, § 5º, da CLT); compensação de jornada no mesmo mês (Art. 59, § 6º, da CLT); jornada de 12×36 sem intervalo para repouso e alimentação (Art. 59-A da CLT).

O parágrafo único do Art. 444 da CLT chega ao extremo de autorizar a exclusão da proteção de instrumentos normativos coletivos os empregados com diplomas de curso superior e que recebam salário superior a duas vezes o teto do regime geral de previdência social (RGPS), que, em 2021, é de R$ 6.433.

6 Quanto à limitação de jornada de trabalho, pagamento de horas extras com adicional e proibição de compensação de jornada no setor privado nos EUA, o autor afirma:

“Ademais, a compensação de jornada (compensatory time off, compensatory time ou simplesmente comp time) é ilegal para os empregados do setor privado abrangidos pela regência do FLSA. Ou seja, considerado o módulo semanal de 40 (quarenta) horas estabelecido em lei, um empregador não pode, por exemplo, com intuito de compensar a realização de 50 horas de trabalho, por determinado empregado em uma dada semana, simplesmente conceder-he redução para 30 horas de trabalho na semana seguinte. Neste caso, será imperioso o pagamento de 10 horas extras prestadas, com o respectivo adicional de 50%” (p. 193).

No Brasil, como já dito no item anterior, essa excrescência é expressamente permitida pelos Arts. 59 e 59-A da CLT; e, o que é pior, por “acordos” individuais. Só se exige negociação coletiva para a adoção de banco de horas se sua duração for superior a seis meses, conforme o Art. 611-A, II, da CLT.

7 Quanto à prática de fraude ao vínculo de emprego, o autor assevera:

“O tratamento equivocado de trabalhadores como autônomos (independent contractors), em fraude à relação de emprego, é uma das principais causas de violação às leis federais e estaduais sobre salário mínimo, jornada de trabalho e horas extras. Trata-se, portanto, de mais uma forma daquilo que os americanos comumente chamam de wage theft (em tradução literal, ‘o roubo de salários’), tema tratado com rigor” (p. 206).

No Brasil, essa nefasta prática acha-se expressamente autorizada pela Lei N. 13467/2017 no Art. 442-B, que assim dispõe:

“Art. 442-B. A contratação do autônomo, cumpridas por este todas as formalidades legais, com ou sem exclusividade, de forma contínua ou não, afasta a qualidade de empregado prevista no art. 3º desta Consolidação”.

8 No que tange às escancaradamente falsas alegações que o Brasil é excessivamente litigioso, chegando a responder por 98% dos litígios trabalhistas em todo mundo, e que contam o beneplácito de alguns ministros do STF, o autor diz:

“Em palestra realizada no Reino Unido, também em 2017, o Ministro do STF LUÍS ROBERTO BARROSO declarou que ‘a gente na vida tem que trabalhar com fatos e não com escolhas ideológicas prévias. O Brasil, sozinho, tem 98% das reclamações trabalhistas do mundo’, do que concluiu ‘há alguma coisa errada num sistema em que o Brasil sozinho tem mais reclamação trabalhista do que o mundo inteiro’.

De forma impressionante, essas declarações de BARROSO embasaram e mereceram expressa menção em parecer elaborado pelo Senador RICARDO FERRAÇO durante tramitação do PL da Reforma Trabalhista..

Após indagações sobre a fonte de tais dados, o gabinete de BARROSO afirmou que o Ministro os teria obtido em uma entrevista concedida por FLÁVIO ROCHA (sócio da rede de lojas Riachuelo) publicada na Revista Um Brasil em 2016.

Ao checarmos o que falou o empresário, no entanto, verificamos que o teor de suas declarações era sensivelmente diverso), tendo afirmado que o Brasil (com 2% da população mundial) teria sozinho mais ações trabalhistas do que 98% da população humana encontrada em todas as demais partes do mundo.

Ou seja, uma afirmação desprovida de maior respaldo empírico-científico (originária de entrevista concedida por um empresário), no sentido que o Brasil seria o país recordista de ações trabalhistas no mundo transformou-se — através de um verdadeiro telefone sem fio — em um mito de que o sistema brasileiro seria sozinho responsável por produzir 98% das ações trabalhistas do planeta, informações estas divulgadas e reproduzidas em palestra de Ministro STF em país estrangeiro e no principal parecer que o PL da Reforma Trabalhista recebeu no Senado (p. 253 e 254).

Outro aspecto digno de nota é o fato de que, no Brasil, predomina a cultura de ajuizamento individual de ações trabalhistas, enquanto nos EUA são largamente utilizados procedimentos coletivos, não apenas na esfera judicial (class actions), mas também no âmbito administrativo, e que acaba por dificultar qualquer análise comparativa baseada em números absolutos de reclamações administrativas ou ações ajuizadas (p.259).

Dessa forma, apesar de reduzido o número de ações perante Judiciário Federal, resta claro que o percentual de casos envolvendo matéria trabalhista é relativamente expressivo em relação ao total de casos de natureza civil, sendo razoável estimar que ações trabalhistas correspondem a mais de 10% das ações dessa natureza nos órgãos de primeiro grau do Judiciário Federal.

Contudo, como já ressaltado acima, a grande massa de ações trabalhistas está concentrada na Justiça dos estados, onde são propostas de 95% das ações judiciais de todo país. Além disso, muitas leis trabalhistas são editadas em âmbito estadual, em temas como salário e jornada (Wage theft), licenças remuneradas ou não), discriminação no emprego, saúde e segurança do trabalho, seguro-desemprego, organização coletiva e sindicalização no setor público, entre inúmeras outras questões.

Dessa forma, considerada a estimativa de 15,8 milhões de novas ações de natureza civil por ano nos estados, e levando em consideração os percentuais estimados das ações em trâmite na Justiça Federal (em que aquelas envolvendo matéria trabalhista corresponderiam a mais de 10% das ações de natureza civil), pode-se estimar que pelo menos 1,6 milhões de novas ações trabalhistas são propostas por ano perante o Judiciário dos estados.

Apesar de inexistir maior valia na comparação com possíveis números absolutos de ações trabalhistas, ressaltamos que, durante todo o ano de 2019, foram recebidas pouco mais de 1,8 milhões de novos processos em fase de conhecimento por todas as Varas do Trabalho no Brasil, do que se constata tranquilamente não fazer qualquer sentido o ‘mito dos 98% das ações trabalhistas do mundo’.

Pode-se concluir, ademais, que tanto o Brasil quanto EUA são países com elevados níveis de litigiosidade judicial trabalhista.

Não se pode esquecer, por fim, que os EUA possuem uma cultura de demandas coletivas, cujo resultado é capaz de abranger um vasto rol de trabalhadores, em verdadeiro efeito multiplicador” (p. 271 e 272).

9 No que se relaciona com honorários sucumbenciais, o autor esclarece:

“HONORÁRIOS DE ADVOGADO EM PERSPECTIVA COMPARADA (p. 279)

Ao interpretar o dispositivo em referência, a Suprema Corte há muito já teve a oportunidade de decidir que, embora a ré deva ser condenada ao pagamento de honorários de advogado quando os reclamantes forem vencedores, somente serão devidos honorários pelo autor quando se verificar que a demanda era frívola, irracional ou sem fundamento… Essa tese foi fixada no julgamento, por unanimidade, do caso Christiansburg Garment Co. v. EEOC, 434 U.S. 412 (1978)- págs. 281 e 282. Civil Rights Act. Seção 706 (k).

A mais alta Corte dos Estados Unidos já percebeu, desde 1978, que abrir indistintamente a possibilidade de condenação da parte trabalhadora ao pagamento de honorários sucumbenciais teria o condão de inibir o ajuizamento de ações sobre discriminação no emprego, o que, por via de consequência, colidiria com os múltiplos esforços para promover a aplicação vigorosa das leis antidiscriminação.

Em breve paralelo com o Direito Brasileiro, vale lembrar que, sob a justificativa de combater demandas infundadas e uma alegada litigiosidade excessiva, o Congresso Nacional aprovou a Lei nº 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), cujo texto incluiu o art. 791-A na CLT, para prever indistintamente a cobrança de honorários advocatícios às partes (autora e ré) que restem vencidas nos pedidos formulados em processo judicial trabalhista, o que se estende também aos casos de sucumbência recíproca (isto é, quando ambas as partes são vencedoras e perdedoras em relação a determinados pedidos). Como se não bastasse, no caso de sucumbência (ainda que parcial) do autor em uma ação trabalhista, embora a Constituição brasileira assegure assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (art. 5º, LXXIV), a nova redação da CLT passou a prever cobrança de honorários advocatícios inclusive a partes hipossuficientes beneficiárias da gratuidade da justiça, com a respectiva ‘compensação’ de outras verbas porventura devidas ao trabalhador, inclusive verbas rescisórias e de caráter alimentar” (p. 283 e 284).

A decisão da 4ª Turma do TST, no recurso de revista (RR) 425-24.2018.5.12.0006, corrobora integralmente a boa razão do brado do autor.

A Ementa acha-se assim exarada:

“PROCESSO Nº TST-RR-425-24.2018.5.12.0006 A C Ó R D Ã O 4ª Turma GMALR/rcp/asm RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.467/2017.

1. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. APLICAÇÃO DO ARTIGO 791-A §3º DA CLT. TRANSCENDÊNCIA JURÍDICA RECONHECIDA. CONHCECIMENTO E PROVIMENTO.

I. A Corte Regional descreveu tratarse de ‘acolhimento parcial do pedido’ e negou provimento ao recurso ordinário interposto pela Reclamada, afastando a condenação do Reclamante ao pagamento de honorárias sucumbências, por entender ‘não se tratar o caso de sucumbência recíproca’.

II. Pelo prisma da transcendência, trata-se de questão jurídica nova, uma vez que se refere à interpretação da legislação trabalhista (art. 791-A, § 3º, da CLT) sob enfoque em relação ao qual ainda não há jurisprudência pacificada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho ou em decisão de efeito vinculante no Supremo Tribunal Federal. Logo, reconheço a transcendência jurídica da causa (art. 896-A, § 1º, IV, da CLT).

III. Sob esse enfoque, fixa-se o seguinte entendimento: tratando-se de reclamação trabalhista ajuizada após a vigência da Lei nº 13.467/2017, como no presente caso, deve ser aplicado o disposto no art. 791-A, e parágrafos, da CLT, sujeitando-se a parte reclamante à condenação em honorários de sucumbência, mesmo sendo beneficiária da gratuidade de justiça. Nos termos do art. 791-A, § 3º, da CLT, quando houver procedência parcial da causa deverá o juiz definir honorários de sucumbência recíproca.

IV. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento”.

10 Quanto à citação de precedentes dos EUA pelos ministros Luiz Fux e Alexandre Moraes, no julgamento da ADC 55 e da ADI 5794, que discutiam a constitucionalidade da transformação da contribuição sindical em facultativa, o autor afirma, de maneira contundente:

“JANUS NO STF: A CITAÇÃO DE UM PRECEDENTE ESTRANGEIRO COMO ELEMENTO PROPAGADOR DE MITOS E DESINFORMAÇÃO (p. 294)

A alusão a Janus v. AFSCME no plenário do STF torna-se um clássico exemplo sobre como citar precedentes institutos estrangeiros sem conhecê-los minimamente. Quando Luiz Fux anunciou seu voto nas ações encabeçadas pela ADI 5794/DF (que discutiam a constitucionalidade da extinção do imposto sindical pela lei ordinária da Reforma Trabalhista), nem sequer a data em que a decisão do Janus havia sido divulgada se sabia ao certo, tendo o Ministro mencionado que se trataria de decisão proferida naquele mesmo dia.

Janus foi objeto de citação expressa não apenas no voto (oral e escrito) de Luiz Fux, mas também no voto escrito de Alexandre de Moraes. No entanto, ninguém esclareceu que o caso norte-americano se referia exclusivamente ao setor público (p. 294).

Ao citar precedentes estrangeiros e utilizá-los para embasar decisões —especialmente quando advindos de sistema com bases estruturantes tão diversas — o STF deveria ao menos esforçar-se para entendê-los e contextualizá-los, oferecendo as ressalvas e explicações devidas.

De que vale citação (inclusive oral) de um julgado sobre impossibilidade de cobrança compulsória de agency fees nos EUA, se o STF não entendeu ou ao menos não esclarece o que são agency fees e agency shop agrements, além de não explicar que se tratava de um caso relatado à negociação coletiva no setor público, algo bastante raro e limitado no cenário brasileiro.

Como tivemos oportunidade de asseverar, a utilização de argumentos de precedentes estrangeiros sem uma mínima pesquisa ou contextualização contribui para a desinformação e propagação de mitos, além de expor a Corte e o Judiciário brasileiro a descrédito” (p. 295 e 296).

O texto fala por si, dispensando qualquer complemento; pena que aqueles a quem ele se dirige diretamente, ao que tudo indica, passarão ao largo dele e continuarão a tecer discursos falaciosos na hora de decidir contra os valores sociais do trabalho.

11 À guisa de conclusão, o autor arremata:

“Não é difícil constatar e concluir, portanto, que generalizações sobre ‘o Direito do Trabalho americano’ ou ‘o Direito do Trabalho nos EUA’, baseadas em argumentos do senso comum, correm o risco de flagrantes equívocos, pois há muitas particularidades nos estados em um sistema sindical que historicamente procurava fortalecer e encorajar os acordos coletivos com regras próprias entre empregados e empregadores.

Ao que insistem em ver os EUA como paraíso de desregulamentação das relações de trabalho, sugerimos uma breve consulta às leis sobre trabalho intermitente na cidade de Nova Iorque, ao extenso Código do Trabalho da Califórnia ou à lei de Massachusetts sobre licenças remuneradas, para ficarmos apenas em alguns exemplos. Isso sem falar das regras de acordos coletivos a regerem as relações de trabalho nos ambientes sindicalizados.

Argumentos do tipo ‘nos EUA, os patrões podem ‘demitir’ a qualquer hora sem justa causa’, ‘nos EUA, não existe aviso prévio’, ‘nos EUA, os trabalhadores não têm licenças remuneradas’, costumam não se sustentar, podendo, na maioria das vezes, ser contrapostos e desmentidos com facilidade, mediante um mínimo de pesquisa” (p. 287 e 288).

“A NECESSÁRIA DESMITIFICAÇÃO DO SISTEMA SINDICAL AMERICANO (p. 291)

Embora completamente diferente do modelo sindical brasileiro e apesar do vertiginoso declínio dos índices de sindicalização verificado nas últimas décadas, esse sistema plant-by-plant bargaining contribui para um elevadíssimo número de ramificações locais de sindicatos também nos EUA, o que faz cair por terra o ‘mito dos poucos sindicatos’, reproduzido em acórdãos do STF e nos Relatórios da Reforma Trabalhista no Congresso brasileiro” (p. 291).

“Contudo, note-se que, enquanto a maioria dos estudiosos nos EUA defende a importância de o processo de sindicalização passar a ocorrer de forma setorial, como maneira de viabilizar solidariedade e apoio entre os trabalhadores de diferentes empresas do mesmo setor econômico, as recentes Reformas Trabalhistas liberalizantes, no Brasil, parecem percorrer caminho inverso. Nesse sentido, por exemplo, a nova redação do art 620 da CLT (introduzida pela Lei nº 13.467/2017) passou a prever textualmente que as condições estabelecidas em acordo coletivo de trabalho sempre prevalecerão sobre as estipuladas em convenção coletiva de trabalho, dispositivo que reforça, em tese, o resultado das negociações individualizadas e pulverizadas, onde a assimetria de poderes costuma se revelar de maneira mais clara” (p. 293).



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